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domingo, 2 de junho de 2013

SOBRE APRENDER, SOBRE ESQUECER

ZERO HORA, 02 de junho de 2013 | N° 17451

ARTIGOS

Fernando Luis Schüler*



A criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV) é uma iniciativa inegavelmente positiva. Parece claro que a memória do regime militar brasileiro resta, em boa medida, como um cadáver insepulto. A Lei da Anistia cumpriu uma função política, que permitiu a rápida reconstrução da nossa democracia. Mas isto não resolve o problema da história. O direito de saber o que houve. De cada família saber de seus mortos. A frustração de perceber que aqueles que mataram ou praticaram a tortura nem mesmo foram punidos pelo conhecimento público e pela vergonha.

Passado mais de um ano de funcionamento, a Comissão vive um momento difícil. O debate sobre a revisão da Lei da Anistia foi antecipado, as divergências entre seus membros são explícitas e tudo parece se aproximar perigosamente do universo comum da disputa política. Vale lembrar que a CNV nasceu como um órgão de Estado, vocacionada a contribuir para a reconciliação nacional através da investigação serena e cuidadosa da “verdade histórica”.

A Comissão nasceu de maneira equivocada. Melhor seria se fosse originária de um entendimento entre os poderes e instituições de Estado. Ela deveria contar com algum rigor sobre o que se está querendo investigar, e de que maneira, bem como com um corpo profissional de juristas e historiadores, em “condições de atuar com imparcialidade”, como determina a lei. Nada disso foi feito. Ela nasceu como um ato do Executivo. Seus membros são pessoas de alta respeitabilidade, ainda que alguns eventualmente distantes de um perfil de imparcialidade. Há quem diga que imparcialidade não existe. Existe, sim. Está lá na lei assinada pela presidente. Se a imparcialidade não existe, a lei também não, o mesmo valendo para a Comissão.

Mal iniciaram seus trabalhos, os membros da Comissão optaram por descumprir aspectos importantes da lei. O primeiro descumprimento parece compreensível: restringir a investigação apenas aos crimes cometidos após 1964. A lei prescrevia estender a investigação até 1946, período evidentemente longo. Melhor teria sido solicitar a sua retificação. O segundo parece bastante grave. A lei determina que sejam examinados os crimes praticados pelos aparelhos “estatais e na sociedade”. Os membros da Comissão decidiram examinar apenas as violações de direitos cometidos por agentes do Estado.

Sua decisão, até agora mantida, é de desconsiderar os crimes cometidos pelos grupos armados que atuaram no país nos anos 60 e 70. O tema é difícil, e imagino que o façam por julgar que foram crimes legítimos. Ao fazer isto, antecipam um juízo histórico que não lhes cabe. O país não instituiu uma comissão para produzir uma interpretação de sua história. O objetivo é o oposto: gerar uma ampla base factual a partir da qual os cidadãos possam fazer a sua interpretação. Ao lado do “direito à verdade”, deveria haver um “direito à interpretação”. Lembro-me das lições de Paul Veyne, para quem a prática da história pode cumprir um papel de purificação, quando nos permite viver uma segunda vez, intelectualmente, aquilo que originalmente vivemos com paixão. No plano do Direito, a justiça restaurativa sugere este caminho. Uma história vivida originalmente com ódio pode dar lugar a outros tipos de sentimento, desde que se deixe a verdade fluir.

O critério da imparcialidade é crucial no trabalho da CNV, pela simples razão de que, quando tratamos de violações de direitos humanos, o que deve valer não é a paternidade ideológica de um crime. A vida de Wladimir Herzog, torturado e morto no DOI-Codi, em São Paulo, em 1975, vale tanto quando a do segurança Cardênio Dolce, morto em um assalto da ALN, no Rio de Janeiro, em 1971. Um é herói, com toda a justiça, outro um anônimo, mas a dor que vai no coração de seus filhos é exatamente a mesma. Os crimes são distintos. Cabe à CNV examinar ambos. Definir sua legitimidade não lhe compete.

Os crimes cometidos pelo regime militar brasileiro são, com certeza, de uma dimensão e gravidade infinitamente superior aos que foram cometidos pelos seus opositores. A estes, porém, também pertence o direito à história, e com certeza seu exame nos trará lições importantes. Quem sabe a Comissão da Verdade deva rever sua posição e ter, doravante, o cuidado de acolher também os apelos das vítimas que por ora lhe parecem indesejáveis. Seria um erro viver a história uma segunda vez com os mesmo ódios da primeira. Algo que faria lembrar a conhecida sentença de Talleyrand sobre Bourbon, à época da restauração: nada aprenderam, nada esqueceram.

*DOUTOR EM FILOSOFIA PELA UFRGS

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