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quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A TROPA, A ELITE E O SISTEMA


A tropa, a elite e o sistema - ANTONIO ENGELKE, O GLOBO, 19/10/2010 às 18h42m


Numa frase que deve virar bordão, o policial que se tornaria chefe de milícia no filme "Tropa de Elite 2" diz o seguinte: "Cada cachorro que lamba a sua caceta." Trata-se da atualização do ditado "farinha pouca meu pirão primeiro". Mas com uma diferença: o "farinha pouca..." não faz mais do que aludir ao egoísmo que se instala em contextos de escassez. Já o "cada cachorro..." dá um passo além: refere-se não ao ato quase instintivo de garantir para si o pouco alimento disponível, mas sim à busca da satisfação do próprio prazer. E não é um ser humano quem empreende essa busca. É um cão.

"Cada cachorro que lamba a sua caceta" é a imagem perfeita da sociabilidade no Rio de hoje. Traduz o individualismo predatório que esgarça o tecido social da cidade. É desse esgarçamento que trata "Tropa 2", mas a partir de uma perspectiva que vai aos poucos se tornando mais tragicamente realista, e por isso mesmo mais generosa. O capitão Nascimento que inicia o filme zombando dos "esquerdistas defensores dos direitos humanos" só se transforma em herói por haver reconhecido que o personagem Diogo Fraga era a única voz lúcida em meio ao mar de corrupção e violência que os cercava. Fraga enxergou, antes de todos, as entranhas do "sistema". É por causa dele que Nascimento enfim perde a inocência - e nos arrasta junto.

Talvez esteja aí o mérito do filme. O primeiro "Tropa" veio saciar os anseios de uma população amedrontada, sedenta por vingança. Em 2007, capitão Nascimento vingou as classes média e alta carioca, fazendo o que elas gostariam de fazer, se pudessem: matar bandidos. O público respondeu com aplausos entusiasmados, e se identificou com o oficial do Bope. Tal identificação é retomada logo no início do "Tropa 2", quando Nascimento ridiculariza Fraga. Mas o personagem interpretado por Wagner Moura sofre uma transformação, sai de sua trajetória natural de "Caveira". Se o público chegar ao final do filme ainda se identificando com Nascimento - alguém que denuncia a ineficiência da política de segurança pública baseada no confronto, que diz com todas as letras que a sociedade é coautora dos crimes cometidos por policiais e bandidos -, então " Tropa 2" terá servido a um propósito maior do que o mero entretenimento. É preciso ser muito, mas muito fascista, para sair do filme e continuar ridicularizando a perspectiva e o trabalho de pessoas como Fraga (Marcelo Freixo na vida real, deputado federal pelo PSOL).

Justamente por isto a pior cena do filme é aquela em que Nascimento vinga o público uma vez mais, espancando o político corrupto. A (desnecessária) cena da surra realiza o desejo dos espectadores, produz catarse, e contribui ainda mais para solidificar o status de herói. Mas se há algo que "Tropa 2" nos mostra é que a reivindicação popular por vingança - a demanda pelo sangue dos bandidos -, e não por justiça, foi uma das molas da engrenagem que gerou as milícias e a perversa lógica política a elas associada. O "sistema" capitalizou em cima desta demanda, não para resolver os problemas da sociedade, mas sim para resolver os problemas do próprio "sistema". É o cálculo eleitoral que tem a pólvora por unidade básica de medida: os governantes derramam sangue de bandido em quantidades suficientes para dar uma falsa sensação de segurança, e os eleitores os recompensam nas urnas, garantindo-lhes a continuidade no poder. O "sistema" segue intacto. O problema da violência também.

"Tropa de Elite 2" poderá deixar outro legado importante, uma mudança na maneira de entender a criminalidade. Se o crime fosse só um desvio individual, então bastaria mais polícia, enfrentamento e cadeia para resolver o problema. Mas "Tropa 2" confirma aquilo que os esquerdistas defensores dos direitos humanos vêm falando há muito tempo: que o ato de praticar um crime não é apenas uma decisão equivocada de um indivíduo tomado isoladamente, mas sobretudo o resultado de uma série de fatores políticos, econômicos e culturais. Ao insistir no desvelamento do "sistema", o filme de José Padilha expõe alguns destes fatores. Contribui assim para mostrar que uma política de segurança pública não pode se fundar numa lógica belicista, militarizada. "Caveiras" não vão derrotar o "sistema". Já a ação política tem alguma chance.

ANTONIO ENGELKE é doutorando em Ciências Sociais.

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