ZERO HORA 28 de fevereiro de 2016 | N° 18459
LEANDRO FONTOURA
ENTREVISTA | JESSÉ SOUZA - Sociólogo, presidente do IPEANos
últimos anos, a herança colonial ibérica se tornou chave para explicar
as mazelas nacionais, principalmente a corrupção. Jeitinho, confusão
entre público e privado e superioridade das relações pessoais sobre a
ordem racional e universal aparecem na imprensa, nas redes sociais e na
academia como leituras certeiras e definitivas da alma brasileira. Nada
disso convence o sociólogo Jessé Souza, presidente do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Em seu mais recente livro, A
Tolice da Inteligência Brasileira, Souza, que é doutor e livre-docente
em Sociologia por universidades alemãs, afirma que esse discurso, além
de ferir a autoestima da população, serve como cortina ideológica para
esconder um problema mais grave: a desigualdade social. Na opinião do
sociólogo, a classe média tradicional, que idealiza os países
desenvolvidos e se considera a guardiã da moralidade da nação, é incapaz
de enxergar um sistema no qual exerce dois papéis: o de explorada pelos
“endinheirados” e o de exploradora dos mais pobres e excluídos.
Na
elaboração do argumento, Souza desconstrói as teses de três grandes
intérpretes brasileiros, Gilberto Freyre, Raymundo Faoro e Sérgio
Buarque de Holanda. O autor aponta que as ideias do trio sustentam, com
verniz científico, as noções de que, no Brasil, o Estado é corrupto, e o
mercado, virtuoso. No mundo político, argumenta Souza, esses princípios
têm servido de arma dos mais ricos e dos liberais contra os governos
Getúlio Vargas, João Goulart, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma
Rousseff, voltados, em sua opinião, à redistribuição da riqueza.
Desde
o lançamento do livro, Souza tem sido atacado pelo caráter governista
da obra. O fato de ter assumido um órgão estatal em abril do ano passado
alimenta as investidas. É justo lembrar que a preocupação do sociólogo
com a tese do patrimonialismo é anterior aos governos petistas. Em A
Modernização Seletiva, de 2000, ele já criticava o trabalho de Faoro e
Sérgio Buarque. Agora, está muito mais incisivo. Leia a entrevista
concedida por e-mail a ZH.
Seu livro faz dura crítica a
Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro. O que ainda
há de válido nesses clássicos?Freyre é um grande
historiador, talvez o maior do Brasil, e seus livros podem ser lidos
para além de sua própria interpretação teórica. Não é preciso comprar a
avaliação do autor sobre si mesmo. Também existem passagens brilhantes
em Faoro e em Buarque. O problema é que eles imaginam um “conto de fadas
para adultos” para explicar o Brasil, um mito nacional. Em Freyre, este
mito ainda é positivo para produzir solidariedade nacional, enquanto em
Faoro e Buarque trata-se do típico complexo de vira-latas. De qualquer
forma, um mito, que não precisa ser nem é verdadeiro e serve a
propósitos políticos, é péssimo para fundamentar uma ciência. Mas foi o
que fizemos. E o fizemos engolindo todo o racismo não explicitado que
está embutido na oposição entre as noções de espírito, moral e
cognitivamente superior, e de corpo (emoção, afeto e sexo), moralmente
inferior e com tendência ao logro e à corrupção. É incrível como as
pessoas puderam comprar tamanha imagem depreciativa de si mesmas. Esse
racismo contra si mesmo foi obra de um liberalismo – do qual Buarque e
Faoro foram pioneiros e fundadores na versão do século 20 – que
endeusava os EUA como paraíso na terra. Não vejo vantagem alguma
continuarmos com isso. Temos é de criticar e fazer melhor.
Por que a tese do patrimonialismo é um “conto de fadas para adultos”?Porque
é falsa de fio a pavio. A tese do patrimonialismo diz que o Estado é
apropriado privadamente por uma elite de Estado, daí as críticas ao
inchaço do Estado e ao aparelhamento político. Diz-se que o Estado é
apropriado por dentro para tornar invisível que é apropriado por fora,
por interesses de mercado. A tese do patrimonialismo brasileiro serve
para iludir o povo acerca de quem o está explorando. Se todo governo em
todo lugar é apropriado privadamente, o problema fundamental é se é
apropriado por poucos ou pela maioria. Entre nós, são alguns milhares de
endinheirados que se apropriam tanto do Estado quanto dos mecanismos de
mercado. Essa elite não está no Estado. É essa a verdadeira elite que
construiu um mercado superfaturado com bens e serviços caros e muito
ruins – que a privatização só piorou – e que explora a classe média todo
dia com o superlucro e o superjuro. É essa elite que não paga imposto
sobre a riqueza – deixando a conta para a classe média e os pobres –, já
que compra, via financiamento privado de eleições, parte expressiva do
parlamento para manter seus interesses representados e nunca permitir
leis impondo imposto sobre riqueza e patrimônio. É essa elite que,
finalmente, controla a mídia que produz e distorce a informação de
acordo com os interesses desse grupo, perfazendo assim todos os poderes
que verdadeiramente importam em uma sociedade moderna. E ainda diz que o
culpado de tudo de ruim é o Estado, que manda em tudo para não assumir a
responsabilidade por nada. É ou não é um perfeito conto de fadas para
transformar adultos inteligentes em tolos?
Para o senhor, a
ideologia liberal, ao mesmo tempo que ressalta a tese do jeitinho e
critica nosso suposto patrimonialismo, joga o peso da corrupção no
Estado, propaga a ideia de um mercado virtuoso e convida a sociedade a
se sentir pura e ética como o mercado. O brasileiro é menos ou mais
corrupto que outros povos?O brasileiro definido como
inferior, como guiado por emoções e inclinado à corrupção, é puro
complexo de vira-latas. Não existe nem sequer o brasileiro em geral, já
que cada classe tem tipos muito próprios. Não somos culturalmente piores
ou melhores que ninguém. Na dimensão institucional, no entanto, podemos
melhorar muito. No caso da corrupção, precisamos de melhor controle da
relação entre política e economia para mitigar a compra da política pelo
dinheiro. A compra de políticos e de partidos via financiamento privado
é uma corrupção que todos veem, mas não choca ninguém. Afinal, é feita
em proveito dos endinheirados. Nossa tradição de culturalismo vira- lata
e de demonização do Estado quando ocupado pela esquerda distorce o tema
da corrupção do nível institucional para o nível pessoal. Em vez de se
discutir uma reforma política profunda, prefere-se manipular o povo e
dizer que só um partido ou só alguns políticos têm culpa no cartório. É
aí que temos a corrupção seletiva quando políticos do PSDB são blindados
pela imprensa e outros são perseguidos impiedosamente.
Se
existe jeitinho brasileiro, ele seria dos ricos, uma vez que o capital
social depende antes do capital econômico e do cultural?O
jeitinho é para quem pode. Mas não é só no Brasil. O jeitinho é
universal, só não pode ser muito visível. Alguém fala da lavagem de
dinheiro de grandes empresas multinacionais em paraísos fiscais? Por que
ninguém acaba com os paraísos fiscais? A evasão de rendas e a sonegação
fiscal são marcas do capitalismo desregulado, um eufemismo para a
“corrupção legal”. O ponto principal é a manipulação do público de modo a
deslocar a atenção para a corrupção seletiva. Como não existe uma
delimitação clara da corrupção, posto que está em todo lugar e faz parte
do jogo de ganhar dinheiro, então tem de se criar um bode expiatório.
Entre nós, é o Estado demonizado quando ocupado por partidos com
interesses em inclusão social e redistribuição de riqueza, como em
Getúlio, Jango, Lula e Dilma.
O senhor diz que o mercado
fomenta o preconceito contra o Estado. Mas são evidentes as falhas nos
serviços, como educação e transporte público de má qualidade. E a agenda
da esquerda para o Estado parece sempre capturada pelos interesses das
corporações de servidores.Não sei se o mercado faz um
serviço muito melhor que o Estado. Vamos comparar universidades privadas
e públicas? A universidade pública é melhor que a privada porque atende
aos filhos da classe média. É o serviço para os pobres que é ruim. Os
pobres ou não possuem poder de pressão efetivo ou não sabem como
exercê-lo. E quem explora a classe média, por exemplo, com um plano de
saúde que é muito caro e comparativamente muito ruim são os
endinheirados. Exceto o 1% mais rico, todos ganham com bons serviços
públicos que precisam de formas alternativas de financiamento. A taxação
da riqueza e do patrimônio, por exemplo, poderia garantir melhores
serviços.
Sua tese é de que os casos de corrupção são
impulsionados por interesses privados alojados no mercado. Mas,
aceitando a tese de que tudo é caixa 2, na outra ponta partidos precisam
se financiar. Como romper esse ciclo?Este é o debate
correto e inteligente. Ainda que não seja uma panaceia, acho que o
financiamento público é importante se acoplado a medidas que tornem mais
transparente a relação entre mercado e Estado. É possível mitigar e
controlar a corrupção. Mas são medidas de inovação institucional que
melhoram a situação e não a absurda divisão infantil da sociedade entre
honestos e corruptos. Tua questão é certeira, uma vez que implica em uma
estratégia universal e não seletiva de combate à corrupção.
O
senhor chama a classe média de tola por acreditar no discurso de que o
mal está no Estado. Mas, se a classe média é o grupo com acesso ao
estudo e à informação, como pode ser tão tola? Mais de 10 anos de
governo de esquerda não seriam suficientes para mostrar o “outro lado”?Primeiro,
a classe média é muito diversa. Temos a classe média moralista que é a
tropa de choque dos endinheirados, posto que o moralismo produz uma
satisfação real. O máximo para essa fração de classe é se ver como
campeã da moralidade e, portanto, melhor que os outros. É uma satisfação
infantil, mas real. A demonização do Estado serve como uma luva para
isso. Mas essa fração da classe média é enganada. Troca uma satisfação
fabricada para ela por uma exploração total de seu trabalho e de suas
rendas que vão para o bolso dos endinheirados. É uma classe média mais
pelo capital econômico e menos pelo capital cultural. Lê e se informa
pouco a não ser pela dose diária de veneno midiático. Existem outras
frações, como a mais crítica e com mais leitura e reflexão. É
minoritária, mas existe. Entre as duas, há uma classe média que se
imagina morando em Oslo e desenvolve uma sensibilidade norueguesa se
preocupando mais com plantas e caça às baleias do que com a pobreza e a
miséria que a cercam. E existem combinações mais complexas entre elas.
Esse é um terreno sobre o qual uma pesquisa empírica abrangente nos
informaria melhor. Na verdade, pretendo estudar esse ponto em breve.
A
ideia de uma nova classe média surgida daqueles que melhoraram de renda
nos governos petistas não é avalizada pelo senhor. Por sua tese, não
basta aumentar a renda porque o diferencial da classe média tradicional é
o capital cultural. Pode explicar essa distinção?Capital
cultural é uma forma de capital tão importante quanto o econômico.
Capital cultural não é apenas escola e títulos universitários. É também e
principalmente os privilégios invisíveis da socialização familiar. São
esses estímulos que criam a capacidade de concentração – que não é
natural, mas privilégio de classe –, a disposição ao pensamento abstrato
e ao cálculo prospectivo. Quem tem isso é um pequeno vencedor quando
chega aos cinco anos na escola. A classe média real tem isso. As classes
baixas não têm e chegam como perdedoras à escola e, depois, ao mercado.
Isso é privilégio passado de pai para filho e não tem nada a ver com
mérito. Os pobres que ascenderam tiveram de lutar contra a ausência de
privilégios e, por exemplo, trabalhar e estudar ao mesmo tempo, com 11
ou 12 anos de idade. Classe média é privilégio de nascença. Daí essas
classes não serem médias de fato.
O senhor critica a linguagem
rebuscada dos intelectuais, fala em ciência colonizada no Brasil e em
ausência de debate na academia. Qual o erro da ciência no Brasil e o que
deveria mudar?O erro da ciência social brasileira –
obviamente com exceções importantes – é ser uma imitação rasteira e
exterior dos modos universitários europeus e americanos e produzir um
contexto avesso à inovação e ao debate crítico. Existem os prédios, as
publicações e as instituições de fomento, mas não se tem o principal: o
espírito científico que é constante inovação e crítica. Tem-se
reverência religiosa aos cânones, o que explica sua continuação até hoje
com pouquíssimas críticas. Foi isso que possibilitou uma ciência social
dominante servil ao poder do dinheiro. Tenho sempre grande confiança
nas novas gerações. Podem e devem se construir em terreno novo e mais
crítico.
QUEM É JESSÉ SOUZA |
Nascido
em Natal (RN), Jessé Souza, 55 anos, é professor na Universidade
Federal de Juiz de Fora. Doutor em sociologia pela Universidade de
Heidelberg (Alemanha), fez pós-doutorado em filosofia e psicanálise na
New School for Social Research, de Nova York, e livre-docência em
sociologia na Universidade de Flensburg (Alemanha). É também autor de A
Modernização Seletiva: Uma Reinterpretação do Dilema Brasileiro (2000), A
Ralé Brasileira: Quem é e Como Vive (2009) e Os Batalhadores
Brasileiros: Nova Classe Média ou Nova Classe Trabalhadora? (2010).
Desde o ano passado, preside o Ipea. |