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quinta-feira, 24 de abril de 2014

AQUILO QUE PODEMOS SUPORTAR

PORTAL MATÉRIA ESPECIALIZADA
SEGUNDA-FEIRA, ABRIL 21, 2014


Por José Alexandre Zachia Alan 




Os meios de imprensa vivem de notícias. As notícias – fatos que, por um motivo ou por outro, chamam a atenção do público – não raramente são tragédias. Daí que quando os meios de imprensa passam às tragédias, há um qualquer algo de frenesi na produção de conteúdo acerca do fato a nos fazer chegar a um estado de confusão no qual o choque da tragédia se mistura com o sufocamento que decorre do excesso.

Tudo certamente piorou nessas situações depois do advento da internet e especialmente depois dos blogs e das redes sociais. E é por causa de manifestações lançadas nesses meios que abandono minha letargia de feriado para este escrito. A primeira peça da qual trato tinha pretensão de examinar a teoria de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal e se fez publicar no Sul 21[i] na internet. A segunda manifestação se resume a um enorme grupo de comentários e matérias de jornal a apontar supostas falhas de sistema que redundaram na tragédia. O caso de fundo, evidentemente, é a morte ainda não bem explicada do menino Bernando, que ocorreu na região de Três Passos, caído pelas mãos, ao que se suspeita, de sua madrasta, do pai e de uma terceira pessoa.

O motivo deste escrito é, ao fim e ao cabo, apontar uma relação estranha entre o pensamento de Arendt no livro sobre o caso Eichmann, maltratado ao limite do que se pode suportar no artigo do Sul 21, e os comentários dos que atribuem culpa pela morte do menino ao Juiz, à Promotora ou ao que se costuma batizar de “sistema”, organização insípida e sem corpo bem identificado.

Para começar do princípio, aponto que Arendt é uma das filósofas mais importantes deste século. Aluna direta de Heidegger, produziu uma enormidade de trabalhos acerca de filosofia política e moral. Todavia, o trabalho que a notabilizou se deu a partir de cobertura jornalística que realizou do julgamento de Eichmann, ocorrido em Israel. O curioso do acontecido é que a tal autoridade nazista foi a única julgada no território judeu, sendo que lá foi parar por conta de incursão de agentes do Mossad na capital Argentina, local onde se escondia após haver fugido da Europa[ii]. As observações de Arendt resultaram numa série de escritos para a revista New Yorker, bem assim num livro chamado “Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal”[iii].

A notabilização desse trabalho decorreu, a princípio, de um enorme descontentamento geral do público leitor com as conclusões de Arendt acerca do julgamento, especialmente advindo da comunidade judaica. 

Convém lembrar que a filósofa – judia, mas também ateia – mantinha relações bastante próximas com alguns próceres do judaísmo. Ao que se conseguiu perceber, a resistência e as críticas que sofreu eram especialmente de duas ordens e vão extremamente bem trabalhadas no excelente filme de Margareth Von Trotta acerca dos acontecidos[iv]. Num primeiro momento, houve intenso desconforto decorrente de Arendt haver apontado, a partir de constatação realizada no julgamento, de que o trabalho de remoção de grandes massas de judeus para os campos de extermínio contara com a colaboração de algumas lideranças nas comunidades judaicas. O segundo aspecto, e é o que mais interessa a este escrito, decorreu de que Hannah Arendt não encontrou em Eichmann um exemplo pronto e acabado do monstro moral coberto pelas cores que lhe haviam sido dadas pelos judeus e pelo resto do mundo no pós-guerra e mesmo pela extensa cobertura jornalística oferecida à ousada operação israelense a capturá-lo no país sul-americano.

Na verdade, Arendt encontrou em Eichmann um burocrata medíocre, sem quaisquer feitos pessoais que o houvessem distinguido e que, por força de uma sucessão de acontecidos mais que lançados ao acaso do que por qualquer outra circunstância, se fez chefe de intrincada operação de, num primeiro momento, retirada dos judeus do território alemão e, um tanto mais adiante, encaminhamento dessas pessoas aos campos de extermínio. Arendt jamais apontou para duas conclusões que lhe vão colocadas à boca de maneira sofrível no artigo jornalístico mencionado acima, quais fossem, de que o mal em si era banal e de que não fora produzidos por monstros morais.

Veja-se, por primeiro, que Arendt jamais pretendeu diminuir a importância dos acontecidos do holocausto e sempre os apontou por resultados brutais e sem precedentes na história humana. Depois, Arendt jamais recusou a ideia de que a máquina colocada em marcha a resultar na morte de enormidade de pessoas não decorria da atuação de monstros morais. Limitou-se a dizer, contudo, que o monstro em questão não era Eichmann e que o preso, cuja condenação defendeu sempre ardentemente, era outra sorte de besta.

Eichmann foi apontado por sujeito cuja maldade específica – categorizada de banal – decorria de haver sido lançado em meio à roda dentada de mecanismo engendrado por outros para atrocidade extrema e lhe haver faltado qualidade moral a levantar-se contra essa sorte de andamentos que se achava em marcha. Ou seja, fala-se de maldade arrimada na indiferença pela perda da vida alheia, o que, de alguma maneira, se confirma pela circunstância específica de que Eichman jamais tivera qualquer desprezo particular pelos judeus, ao contrário das sustentações racistas de outros líderes do nazismo.

Na verdade, o que Arendt produziu foi libelo violento contra ideia filosófica antes arrimada em famosa afirmação atribuída a Edmund Burke, “The only thing necessary for the triumph of evil is for good men to do nothing”[v]. Para a filósofa judia, os que se quedam silentes não são “bons”, mas maus propriamente ditos. Na verdade, banalmente maus.

A relação desses acontecidos com a morte do menino Bernardo se dá porque, curiosamente, a opinião jornalística, fomentada certamente pela opinião pública, coloca, como se diz aqui pelo sul, a tava em culo do que sustentara Hannah Arendt.

Pelo que se pode estabelecer nesse primeiro momento, há suspeita de que a madrasta, com a participação de outra pessoa, recompensada por dinheiro para pagar um apartamento, teria administrado determinada dose de medicamento no enteado, depositado seu corpo – se com ou sem vida ainda não se sabe – numa cova especialmente aberta para essa finalidade e jogado soda cáustica por cima. Busca-se, ainda, descobrir que tipo de participação o pai tem no acontecido da morte, não faltando quem lhe impute culpa. É difícil conseguir imaginar um quadro mais tétrico, especialmente porque tudo se desenha a ver que o crime foi praticado a extirpar de equação familiar e financeira menino fruto de relacionamento anterior do varão com esposa que, segundo se apurou, se suicidara.

Presumindo que tudo de fato ocorreu como se suspeita, não é difícil ver que não se está diante de mal como o identificado por Arendt no caso de Eichmann. Ou seja, está-se diante do mal classicamente considerado, produzido pelos monstros morais tradicionalmente identificados, os que atentam contra a existência de criança para a satisfação de desejo seu de alcançar determinado bem, posição determinada ou concretizar alguma idealização doentia do que sua vida devia ser.

Então, causa profunda estranheza o esforço e a convicção de alguns a tentar, em alguma medida, diluir o mal da atitude dessas pessoas a apontar falha do tal “sistema”. As justificativas para tanto, aliás, beiram o ridículo, como se justo ou possível aquilatar o que se devia ter feito então com o conhecimento que se tem hoje. Ou seja, não resta dúvida a ninguém de que se os atores do tal processo a envolver o menino tivessem antevisto o futuro por qualquer fresta mesmo que minúscula, teriam prontamente determinado sua remoção. Ou mesmo como se houvesse garantia de que a mudança de guarda para a avó ou terceiro viesse a livrar o pobre Bernardo da sanha dos homicidas.

E de nada adianta argumentar com a especial celeridade com que o tal processo tramitou - que então tratava do manejo do afeto de um menino de onze anos e que não contava com qualquer indício de violência – ou mesmo da postura exemplar da Promotora de Justiça que recebeu o garoto em sua sala e, com base unicamente em seu relato, desfechou ação contra o pai, pouco se importando com sua classe social ou econômica. O contrargumento vem, quase sempre de quem jamais tocou num processo que tramita na Infância e Juventude, que Promotora e Juiz deveriam se ter desapegado da lei ou, então, que deveriam ter tomado mais essa ou aquela providência.

Em resumo, essa sorte de abordagem, em alguma medida, retoma o mal original e o força para dentro de engrenagem social como se a morte do menino não adviesse de algo residente em cada um de nós – apelidado de “Efeito Lúcifer” por Zimbardo[vi] -, mas que por motivo ainda não bem explicado aflora mais em uns que em outros. Cuida-se, a bem da verdade, de trilhar o caminho contrário de Arendt, que apontava o mal resultante de indiferença diante de genocídio produzido pela roda dentada, mas inserir o resultado do mal dos monstros morais originais como se fosse produto de sucessão de acontecidos decorrentes do funcionamento de uma determinada engenharia social.

Consigo, verdadeiramente, entender porque isso ocorre. Não é de fato fácil encarar tamanha atrocidade praticada por alguém que identificamos por semelhante nosso. Não é fácil verificar que alguém como nós fez o que supostamente fez a madrasta de Bernardo, o que desafia tenhamos de enfrentar nossa própria parcela de maldade, que talvez nesta altura – e certamente em graus infinitamente menores – imputa parte da culpa aos que fizeram o melhor que puderam com as informações que tinham. Aliás, a culpa coletiva – de todos – é a melhor forma de tornar as faltas e os desvios por culpa de ninguém, mas isso é mesmo tema para outra abordagem de Arendt.

A arrematar tudo queria repisar Zimbardo e me dirigir especialmente à Dinamárcia, pessoa que conheço e admiro há muitos anos e que espero sinceramente não se chateie com essa minha longa reflexão. Ao psicólogo americano, a resistência ao mal que cada um de nós guarda em si há de se dar com a propensão que temos, também dentro de nós, de nos convertermos em heróis. Falo de que nos tornemos pessoas capazes de vencer os limites que nos vão impostos a defender nossos valores, nossas escolhas e para defender o que há de bom no mundo em que vivemos.

A esse respeito, lembro-me sempre do final de um dos meus filmes favoritos, “The Dark Knight”, o segundo da série do novo Batman. Naquela ocasião era preciso que o herói fosse perseguido por crime que não cometeu, tudo a manter a higidez da imagem de outro alguém que representava a virtude. Indagado acerca dessa incongruência, o comissário Gordon responde que isso tudo se dá porque o herói não é o que desejamos que ele seja, mas o que precisamos que seja. O herói será o que merecemos e se, eventualmente, o perseguimos é porque ele pode suportar.


[i] Aqui: http://www.sul21.com.br/jornal/o-mal-nao-e-banal-sobre-o-assassinato-de-bernardo-boldrini/, consultado no dia 21 de abril de 14.
[ii] Para descrição interessante acerca do episódio, recomendo o excelente Caçando Eichman, de Bascomb, Neal. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.
[iii] São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
[iv] Hannah Arendt - Ideias Que Chocaram o Mundo (2012).
[v] A despeito da frase ser atribuída ao filósofo em questão, não há registro em seus trabalhos de que tenha de fato dito ou escrito algo assim. De qualquer sorte, a ideia bem se insere no contexto geral de sua produção filosófica.
[vi] Zimbardo, Phillip. O Efeito Lúcifer. Rio de Janeiro: Editora Record, 2012.


MATÉRIA INDICADA POR Ângelo De Araujo Regis
FONTE
http://materiaespecializada.blogspot.com.br/2014/04/aquilo-que-se-pode-suportar.html#comment-form

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