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terça-feira, 28 de janeiro de 2014

UM HOMEM DO SUL


Tupamaros desejavam construir o socialismo e ameaçavam: ‘Se não houver pátria para todos, não haverá para ninguém’

DANIEL AARÃO REIS
O GLOBO
Publicado:28/01/14 - 0h00



Caía a tarde chuvosa do dia 5 de setembro de 1971, em Montevidéu, quando Serrana Auliso, moradora de uma casa modesta na Rua Solano Garcia 2.535, foi atender a um vizinho que chamava. Entraram com ele dois jovens: eram do Movimento de Libertação Nacional — tupamaros — e disseram-lhe querer apenas ocupar os aposentos por alguns instantes.

Trancada no quarto dos fundos, Serrana foi testemunha involuntária da mais ousada fuga de presos políticos da América Latina. Por um túnel de cerca de quarenta metros, escavado do vizinho presídio de Punta Carretas, pelos esgotos que passavam por baixo das celas, e que iam dar exatamente em sua sala de estar, evadiram-se em menos de meia hora 116 presos, entre os quais as principais lideranças do movimento guerrilheiro.

Os “tupas”, como eram chamados, suscitavam esperanças e medos, pelas ações e manifestos onde luzia o símbolo de uma estrela de cinco pontas. Desejavam construir o socialismo, e ameaçavam: “Se não houver pátria para todos, não haverá pátria para ninguém.” Através da catástrofe revolucionária, um mundo livre da injustiça e da opressão. Era o socialismo do século XX, marcado por guerras e ditaduras, por meio das quais almejava-se mudar a sociedade através do Estado.

Enquanto duraram, os tupas infernizaram as elites uruguaias.

Entretanto, a luta armada foi derrotada, seja pelo contexto internacional desfavorável, seja pelo fato de que as maiorias, em nome das quais os guerrilheiros lutavam, não encontraram ânimo para acompanhá-los. Como melancólica expressão da derrota, quase todos os evadidos de Punta Carretas acabaram mortos, exilados ou recapturados.

Mas, se não apoiaram o socialismo, as maiorias também viraram as costas para as ditaduras. Em processos acidentados, restaurou-se a democracia nas terras da América do Sul. O Uruguai não ficou de fora, aprovando uma anistia em 1985 e restabelecendo o jogo político baseado em eleições livres.

Reemergiram aí os tupamaros. Mantinham as convicções socialistas, mas passaram a compreendê-las de outro modo. Tratava-se de persuadir as pessoas através do debate. A democracia como um valor permanente, fundada na organização autônoma das gentes. A solidariedade ativa, superior à miséria da luta do “cada um por si e Deus por ninguém”. A sobriedade como alternativa, melhor do que o consumismo insaciável. A luta pelo tempo livre das exigências do trabalho extenuante e inútil. Livre da dominação do Estado, do qual se deve desconfiar, mesmo quando aparece com promessas de “cuidar” das pessoas, roubando-lhe o bem mais precioso — a própria iniciativa. Livre das imposições do mercado, esta idolatria que “organiza a economia, a política, os hábitos e até nos financia em parcelas e cartões a aparência de felicidade”, mas só sabe ensinar a “comprar, comprar, comprar”. É urgente ganhar tempo para devotá-lo ao que interessa: à reflexão, à contemplação e à construção das relações afetivas, o amor, a amizade, a solidariedade, a família.

Seria preciso mudar as concepções e os sentimentos, mesmo dos mais pobres, pois o capitalismo está em toda a parte, envolvente, e só pode ser superado a partir de pessoas capazes de autogoverno em tudo que seja possível, o que implica não apenas trabalho coletivo, mas tempo, longo, intergeracional, porque “pelo caminho mais longo a viagem é mais curta”.

José Alberto Mujica Cordano, o Pepe Mujica, presidente do Uruguai, sustenta estas concepções. No passado, participou de várias ações dos tupas e estava entre os fugitivos de Punta Carretas. Recapturado, pegou uma cana de 14 anos, muitos em solitária, obrigado a conversar com formigas para passar o tempo. Recorda para nada esquecer, e sente como suas as derrotas do socialismo contemporâneo, porque elas ensinam como “não fazer”, mas não cultiva ódios pessoais, mesmo porque “el odio no construye un carajo”.

Pepe Mujica tenta levar à prática suas ideias. Largou de mão o palácio presidencial para viver numa chácara com a mulher, senadora da República. Doa quase todo o salário para programas populares, anda num fusquinha antiquado e faz o próprio vinho, que saboreia com gosto. Com sapatos grossos e empoeirados, calça e suéter surrados, boina na cabeça, acompanhado de Manuela, a cachorrinha manca, inspira a confiança de um avô sábio que qualquer um gostaria de ter.

Na última Assembleia Geral da ONU, realizada em setembro passado, ao compartilhar suas propostas com os líderes mundiais, apresentou-se apenas como um “homem do Sul”. Com palavras simples e persuasivas, defendeu a hipótese de uma outra vida neste mundo. Parecia estar pensando na construção de uma passagem, um outro túnel, universal, não para levar os presos de Punta Carretas para a casa de Serrana Auliso, mas para fazer as gentes escaparem da tirania do Estado, do mercado e do trabalho, e encontrarem a sonhada e necessária liberdade.

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