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segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A TOMADA DO RIO


A TOMADA DO RIO - Era ensurdecedor e amedrontador. ZH acompanhou a operação que recuperou o Complexo do Alemão após décadas de domínio de traficantes - CID MARTINS E HUMBERTO TREZZI | Enviados Especiais/Rio, Zero Hora, 29/11/2010

Foi sob fogo cerrado que a lei voltou a reinar, ontem, num território que há mais de duas décadas pertencia ao crime. Policiais civis, militares, federais, fuzileiros navais e soldados do Exército conseguiram penetrar na maior e mais importante fortaleza do tráfico no Rio.

Uma tempestade de balas jorrou do alto das 16 favelas do Complexo do Alemão sobre as cabeças dos representantes da lei. Isso não impediu que, como se fossem membros de um só organismo, mais de 2,6 mil policiais avançassem de forma precisa e coordenada pelas principais vias dessas comunidades situadas na Zona Norte carioca. A ação não foi sem sangue – pelo menos dois traficantes morreram e outros dois ficaram feridos – mas foi muito menos traumática do que a cúpula policial e militar temia. ZH subiu um dos morros junto com os policiais e descreve aqui a operação, cujo ápice foi o hasteamento da bandeira do Brasil em um lugar antes dominado pelo tráfico.

A tomada dos morros mais hostis ao poder público no Rio começou com uma chuva de projéteis ao amanhecer. Após passarem a noite em vigília na entrada da favela, policiais federais e soldados do Exército reforçavam o contingente em torno do Morro do Alemão, quando traficantes começaram a disparar a esmo contra o asfalto. Foram pelo menos 20 tiros, fazendo militares derrubar o capacete e os pentes de armas na corrida. Em segundos, eles começaram a devolver os tiros. O piso ao lado de uma padaria ficou forrado de cápsulas calibre 7.62mm dos fuzis FAL do Exército, até que os militares conseguiram conter os agressores.

O ataque aos traficantes encastelados nas 16 favelas começou pelo alto, quando faltavam dois minutos para as 8h. Um helicóptero Huey da Polícia Civil, blindado, deu um voo rasante sobre a favela da Grota e desfechou centenas de tiros de metralhadora de cinturão (antiaérea) sobre as lajes onde se empoleiravam os bandidos. O som era ensurdecedor e amedrontador. Populares se abaixavam enquanto os atiradores do helicóptero faziam seu trabalho de “amaciamento” do terreno e abalo nos ânimos dos criminosos.

Veio então o assalto por terra. Feito uma serpente sobre rodas, dezenas de viaturas da Polícia Civil saíram da Estrada de Itararé, engrenaram uma segunda marcha e subiram cantando pneus a lomba que dá acesso à Favela da Grota, a Rua Joaquim de Queiróz. Tiveram de desviar de um trilho de trem fincado bem no meio do asfalto pelos traficantes. Desceram dos carros de arma em punho. Tiros espoucavam de todo o lado, e os policiais continuavam rumo ao topo, se esgueirando, verdadeiro formigueiro em armas.

Os agentes vestiam uma miscelânea de roupas. Além do tradicional preto, alguns usavam chapéus camuflados, outros toucas ninja que cobrem todo o rosto. Temiam futura vingança dos bandidos, caso fossem reconhecidos.

A maioria das equipes de delegacia entrou nas favelas guiada por um X-9 (alcaguete). São criminosos que trocaram de lado. Zero Hora viu dois deles em ação. Estavam de capuz, bermuda, tênis e óculos escuros, para evitar identificação. Apontavam com o dedo para as bocas-de-fumo, casas de parentes de traficantes, bares onde é receptada mercadoria. Os policiais esfregavam as mãos, de contentes. Um dos informantes portava uma pistola. Disse que ganhou para sua defesa pessoal...

Na subida da Grota, agentes do Core (Coordenadoria de Recursos Especiais, a tropa de elite da Polícia Civil fluminense) ganharam do X-9 um presente: a dica sobre a casa de um dos traficantes do morro. Ali estavam guardadas, ostensivamente, quatro motos e dois automóveis de luxo (um Ômega e um Corolla). Muito para alguém que vive na favela, comemoram os policiais, que arrombaram a garagem, fizeram ligação direta e desceram o morro com os veículos, apreendidos para vistoria.

O delegado Mário Mendonça, da Delegacia de Roubos e Furtos de Automóveis, comandou uma busca casa a casa, beco a beco. Usava pés de cabra para abrir prédios abandonados. O símbolo CV está pintado por tudo e serviu de alvo.

Às 10h, com calor de 30ºC, os policiais civis chegaram ao topo da Grota. Tiros começaram a estourar de todos os lados. Os agentes e os repórteres que os acompanhavam se jogaram para os lados, se esgueiraram pelos becos, se protegeram de qualquer vão que possa oferecer visão para o atirador misterioso. Alguns policiais apontaram os fuzis para onde supunham terem vindo os tiros e revidaram. O som da metralha ecoou pelos becos, assustador, permeado pelo cheiro de pólvora e pelos gritos de alerta. Os poucos moradores que tinham se arriscado a sair para comprar pão ou leite fugiram, gritando, desesperados para sair daquele inferno. Assim como começou, o tiroteio terminou. Não se sabe com certeza de onde vieram os disparos. Em seguida, em cima de uma laje, os policiais encontraram uma túnica militar abandonada. Possivelmente, do franco-atirador que tentava intimidá-los.

O avanço continuou, por cinco quilômetros de ruelas fedendo a urina, ladeiras e sustos. Os policiais toparam com os bens largados pelos traficantes. Motos Kawasaki Ninja, BMW... um laboratório de cocaína, com balança ainda cheirando a produtos químicos... coldres de armas... 10 quilos de maconha dentro de um bar abandonado. Quatro suspeitos sem documentos foram detidos e interrogados, aos gritos.

Por volta das 11h, um caveirão (veículo blindado) da Polícia Civil tentou vencer uma ladeira para auxiliar os agentes. Não conseguiu. Uma barricada formada por trilhos, blocos de cimento e lixo impediu. Os policiais se conformam. Tinham acabado de encontrar colegas da PF e da PM, que avançavam pelos outros lados. A sensação de vitória pairava no ar, depois de retomarem o território que, até aquele momento, era dominado por quase 600 traficantes armados.

Tabuleiro da asfixia ao tráfico

De uma ofensiva que colocou blindados a derrubar barricadas na Vila Cruzeiro e centenas de traficantes para correr de uma favela a outra, a ação na zona norte do Rio de Janeiro evoluiu, ontem, para um cuidadoso pente-fino. A fim de evitar confrontos em uma área em que vivem mais de 100 mil cariocas, 2,6 mil homens entre integrantes das Forças Armadas e policiais civis, militares e federais optaram por vigiar saídas e ocupar o Complexo do Alemão vasculhando cada uma das 30 mil residências. A ocupação se encerrou sem um temido banho de sangue, mas as buscas por centenas de traficantes seguem vielas adentro.

Esperança na caixa de fósforos


O desabafo dos moradores das favelas do Rio que foram libertadas do tráfico tem aparecido das mais variadas formas: recorde de telefonemas para o Disque-Denúncia, comemorações com os policiais, poses para fotos com as tropas. Chamou a atenção, entre esses casos, uma moradora da Vila Cruzeiro que, sem se identificar, entregou na manhã de sábado à repórter Susana Naspolini, da TV Globo, uma caixa de fósforos que continha uma carta. Escrito a mão, o texto agradece às forças de segurança por terem libertado a favela do domínio dos traficantes. A autora encadeia versos do Hino da Proclamação da República, popularizado pela escola de samba Imperatriz Leopoldinense: “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre todos nós”. A jornalista Carla Vilhena leu o material no ar durante o Jornal Nacional daquela noite. Aos policiais, a autora se refere como “guerreiros” e “heróis”.

De olho na operação inédita

A imprensa internacional acompanhou ontem a “conquista” do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Os principais sites internacionais chamaram a atenção para a ação sem precedentes e citaram as imagens de televisão que mostraram a entrada de tanques no Complexo. De acordo com a CNN, a polícia entrou em um “virtualmente impenetrável labirinto de favelas”, em busca de líderes do tráfico de drogas. O site do jornal espanhol El País publicou uma análise da situação, mostrando “o que está por trás dessa guerra”. “Esse novembro negro pode ser também o mês em que o Brasil começou a vencer o crime”, descreve o repórter Juan Arias, comentando que há talvez um excesso de otimismo entre a imprensa nacional. “Rio, e em parte o Brasil, estava tristemente acostumado ao fato de que as grandes cidades estivessem sob o controle dos traficantes de drogas que impunham suas leis com a conivência de policiais corruptos, advogados de presos perigosos, juízes e políticos que se servem dos traficantes para conservar seu poder local e enriquecer”, publicou o El País. O jornal britânico The Guardian cita que os traficantes deixaram para trás, na fuga, luxuosas mansões com piscinas e sauna.

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