ARTIGOS
Flávio Tavares*
A indignação é virtude. Surge do fundo da alma, naturalmente, para nos defender da injustiça, da afronta e outras formas de opressão ou horror. É a indignação que nos diferencia dos demais seres vivos. Por ser inata, prescinde da violência e rejeita a maldade, pois existe para se opor a elas. Só o indigno não se indigna.
A morte do cinegrafista Santiago Andrade, atingido por um rojão durante uma manifestação de protesto no Rio de Janeiro, me faz pensar, porém, em como se pode manipular a indignação. O jogo pelo poder fez isto ao longo dos séculos. Nos regimes autoritários, o “provocador” é alguém “plantado” pela polícia ou pelo poder, sempre mais intrépido que a própria multidão: um herói de cera mantido pelos grandes mandões.
O mais funesto exemplo histórico da “provocação” fará agora 81 anos: a 27 de fevereiro de 1933, três semanas após assumir o poder pelo voto, Hitler mandou incendiar o Reischtag, o parlamento alemão, e culpou “os comunistas e a esquerda”. No dia seguinte, o “decreto de proteção ao povo e ao Estado” legalizou a fúria do nazismo e implantou o terror e o crime como forma de governo. As Sturmabteilung (tropas do assalto) do partido nazista substituíram a polícia e a Justiça.
Não comparo a Alemanha de 1933 com o Brasil de 2014. Tudo é diferente. Mas, no Rio, surgem indícios de que, em meio aos “mascarados de preto” das manifestações, há pequenos mercenários induzidos a transformar a indignação em crime.
Não vou ressuscitar Hitler e inventar que “a esquerda” remunera a quem quebre e saqueie – no Rio, o narcotráfico é a única força poderosa, acima de partidos e do governo. O caos da indignação de rua, porém, criou um hábitat propício aos vícios amorais dos políticos que, há anos, se alimentam da ignorância e do marginalismo. O jornal O Globo apontou detalhes de como o assessor de um deputado estadual do PR, ligado ao ex-governador Anthony Garotinho, recrutou baderneiros a R$ 450 diários em distúrbios de rua em 2013. De novo candidato a governador do Rio, agora pelo Partido Republicano, Garotinho é a estrelasímbolo da constelação política brasileira: passou por seis diferentes partidos com a naturalidade de quem muda de marca de cerveja, sem ter qualquer preferência, só para saciar a sede...
Estaria aí a ponta do pavio?
Seja qual for a verdade, como esquecer que cultivamos a violência quase em cada ato ou cada passo? Nos jogos eletrônicos (que chamamos de “videogames”, em inglês), as crianças disputam guerras, trocam tiros ou pontapés e vence quem “mata mais”. Os desenhos infantis (que o DVD leva aos lares) têm personagens tétricos e vingativos, nunca bondosos. Na TV, a publicidade comercial apela para a vulgaridade ou ensina a beber cerveja e a programação nos delicia com o grotesco Ratinho (e similares) ou com as afrontosas banalidades do Big Brother Brasil.
Esquecemos que a vulgaridade é o nascedouro da violência e seu suporte ideológico?
Não se estranhe, pois, que a competição se instale em cada um de nós como ódio ao nosso semelhante, não como emulação para aprender com seu exemplo. Assim, é triste que, na casa paroquial do município de Vicente Dutra, nas Missões, os deputados federais Luis Carlos Heinze, do PP, e Alceu Moreira, do PMDB, tenham reunido agricultores para pregar a violência armada contra índios, negros, homossexuais “e tudo o mais que não presta”.
A pregação da barbárie por quem foi eleito para compor a lei e agir dentro dela não é só algo retrógrado. É o desmascaramento de uma fúria superior à dos vândalos mascarados que quebram, incendeiam, saqueiam e matam, até.
*JORNALISTA E ESCRITOR
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