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sábado, 22 de fevereiro de 2014

SOMOS TODO SANTIAGO


O rojão que matou o cinegrafista Santiago Andrade atingiu cada um de nós. É preciso dar um “basta!” à escalada da intolerância e da violência nas manifestações de rua

GUILHERME EVELIN E HELIO GUROVITZ, COM RAPHAEL GOMIDE E VINÍCIUS GORCZESKI
14/02/2014 21h16 - Atualizado em 21/02/2014 13h55


Jornalistas são os olhos, ouvidos e vozes de uma nação. Olhos, ouvidos e vozes que trabalham para todos. É por meio dos olhos das câmeras que vemos o que acontece em locais distantes. Por meio dos ouvidos dos microfones que escutamos o que os outros têm a nos dizer. Por meio das vozes que narram as histórias que tentamos entender o mundo, compreender nosso tempo, alcançar um conhecimento modesto sobre o pouco que cabe a cada um de nós saber nesta vida. Sem olhos, sem ouvidos, sem vozes, restam apenas ignorância, escuridão, silêncio.
Qualquer ataque à imprensa é um ataque a esses olhos, ouvidos e vozes. Quem ataca a imprensa ataca olhos, ouvidos e vozes que trabalham para si próprio, que estendem sua própria visão, sua própria audição e sua própria voz. Quem ataca a imprensa não quer apenas cegar o outro – quer também ficar cego. Não quer apenas ensurdecer o outro – quer também ficar surdo. Não quer apenas calar o outro – quer também ficar mudo. 
Ser os olhos de todos nós era o trabalho do jornalista e cinegrafista Santiago Andrade, da Rede Bandeirantes de Televisão. Santiago foi atingido com um rojão na cabeça, enquanto trabalhava na cobertura de protestos contra o reajuste da tarifa de ônibus, no Rio de Janeiro na quinta-feira, dia 6 de fevereiro. Sua morte na última segunda-feira, dia 10, fez dele a primeira vítima a morrer num conflito provocado pela espiral de manifestações que tomaram o país desde as jornadas de junho do ano passado, quando milhões de brasileiros foram às ruas protestar inicialmente contra reajustes nas tarifas de ônibus, depois contra carências de toda sorte.

A PRIMEIRA VÍTIMA O momento em que  o rojão atinge  o cinegrafista Santiago Andrade. A escalada  da violência nas manifestações fez  seu primeiro cadáver (Foto: Agência O Globo)
Desde então, as manifestações minguaram em participação e passaram a ser monopolizadas por grupos de ativistas violentos – entre os quais praticantes da tática anarquista conhecida como black bloc. Eles transformaram em meta o vandalismo contra governo, polícia, imprensa, bancos, estabelecimentos comerciais, monumentos – e tudo aquilo que possa estar associado às instituições democráticas. Não é uma atitude desprovida de racionalidade, como lembra o cientista político Fernando Luís Schüler, em artigo na edição de ÉPOCA desta semana. Trata-se de uma ideologia antiga e tosca, inaceitável num Estado democrático de direito. Ela procura justificar a violência como reação à “violência do Estado” e inspira a ação dos ativistas, recrutados entre jovens com amplo acesso à internet, formação intelectual de menos – e irresponsabilidade de mais.
É o caso de Caio Silva de Souza e Fábio Raposo, os dois rapazes que armaram o rojão que matou Santiago. É provável que digam a verdade quando afirmam que não o tinham como alvo. Mas não foi por acaso que o morteiro o atingiu. Os jornalistas têm sido algumas das principais vítimas do aumento da truculência nos protestos. Segundo um levantamento feito pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), 118 jornalistas foram alvos de violência, desde o início das manifestações. Um relatório da organização internacional Repórteres sem Fronteiras considera o Brasil o país no hemisfério ocidental que mais registrou  mortes de jornalistas ligadas ao exercício da profissão em 2013. (Em 2012, tal posição era do México.) No mundo, o Brasil foi o oitavo país mais perigoso para a atividade jornalística.
Toda vez que a violência se banaliza ou vira uma arma política, quem perde somos todos nós. Quando essa violência atinge jornalistas, perdemos duplamente.  Pela violência em si – e pela perda de nossos olhos, nossos ouvidos, nossas vozes. Alguns políticos míopes, cujo principal objetivo na vida pública parece ser aferrar-se ao poder, podem achar que a imprensa no Brasil constitui hoje uma “oposição sem cara” ao bloco político no governo. Eles se esquecem de dizer – certamente não por ignorância – que o papel da imprensa numa democracia é justamente funcionar como olhos vigilantes, ouvidos atentos e vozes destemidas da sociedade – para denunciar os abusos, desvios e erros de quem exerce o poder. Nas palavras sensatas do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, em entrevista a ÉPOCA: “Chega! É hora de dar um basta!”.

Em 2013... (Foto: ÉPOCA)
Jornalistas viraram alvos preferenciais da violência no Brasil porque, ao estar presentes nas manifestações nas ruas, cumprem sua missão de servir como olhos, ouvidos e vozes da sociedade. Os abusos da polícia na contenção das primeiras manifestações foram denunciados pela imprensa profissional e serviram de estopim para as jornadas de junho de 2013. Ao relatar o despreparo e a falta de controle emocional dos policiais para lidar com um novo tipo de manifestação, sem lideranças identificáveis e convocada pelas redes sociais, os jornalistas frequentemente se tornaram vítimas, eles próprios, dos abusos. Segundo o levantamento da Abraji, a maior parte das violências contra jornalistas tem partido de policiais.
O despreparo policial realimenta a violência dos ativistas. Para interrompê-la, os abusos precisam ser punidos de todos os lados – e eles têm sido pouco castigados, apesar dos muitos flagrantes. A Polícia Militar do Rio de Janeiro informou a ÉPOCA que concluiu apenas três sindicâncias sobre excessos cometidos no controle das manifestações. É preciso também valorizar os policiais em seu papel de agentes do Estado e dar-lhes os meios adequados para enfrentar manifestantes armados de pedras, artefatos explosivos, facões, querosene e bolas infláveis.  É necessária uma revisão da legislação para impedir que um ativista seja preso por agressão a um policial um dia, e no outro já esteja liberado. “Não é possível que alguém dê uma pedrada num policial e responda por lesão leve”, diz o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Fernando Grella Vieira. “Precisamos adequar a legislação, para termos instrumentos de resposta às situações de vandalismo.”
A violência nas ruas encontra também sua correspondência nas redes sociais, onde a retórica da intolerância tem se amplificado por pistoleiros de aluguel e oportunistas rasteiros, que agem movidos por mera pecúnia. Se quisermos dar um “basta!” à brutalidade, como diz o ministro Cardozo, é preciso também um esforço para trazer a discussão pública para termos mais civilizados e menos bestiais. “É melhor contar cabeças do que cortar cabeças”, costumava dizer, em defesa da democracia, um dos maiores intelectuais do século XX, o italiano Norberto Bobbio. No labirinto da convivência coletiva, o único salto qualitativo possível, diz Bobbio, é da violência para a não violência.
É fundamental que a morte de Santiago seja um ponto de inflexão para isso – a hora do “basta!”. Nos protestos estudantis de 1968, uma palavra de ordem ecoou no Rio de Janeiro após a morte do estudante Edson Luís de Lima Souto, atingido pela polícia durante a invasão de um restaurante universitário: “Mataram um estudante, poderia ser seu filho”. No nosso tempo, a morte de Santiago poderia suscitar uma palavra de ordem semelhante: “Mataram um jornalista, poderia ser você”. Na verdade, era você. E todos nós.
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Imprensa na mira (Foto: Diego Zanchetta/Estadão Conteúdo, Uanderson Fernandes/AFP, Pedro Kirilos /Ag. O Globo,  Alan Morici/Brazil PhotoPress, Midia Ninja, Ueslei Marcelino/Reuters, reprodução (3), Amauri Nehn/Brazil Photo Press, André Coelho/Ag. O Globo, Fernando Bizerra)

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