ARTIGOS
por Jayme Eduardo Machado*
Alguém saberia explicar por que o rojão sem mira, no meio do formigueiro humano desvairado, escolheu, a esmo, a cabeça de um cinegrafista? Quando Sartre falou que o inferno entenda-se os diabos! são os outros, estava fazendo crítica à inconsciência individual. Se, ao invés, dissesse que cada um é responsável pelo inferno à sua volta, estaria sendo mais explícito e realista, mas menos literário. Pois é dessa realidade infernal que queremos nos ocupar para procurar entender o aparente acaso que vitimou o cinegrafista. Tarefa que não prescinde da análise de nossa realidade sociopolítica urbana, que é na pólis que as coisas acontecem.
Independentemente dos índices de desenvolvimento social que comprovam a redução da pobreza extrema. Da emergência de uma “nova” classe média que pode consumir mais. Do sistema de cotas que habilita outrora excluídos a vislumbrar na sua alça de mira o diploma universitário antes inatingível. Das ruas entupidas de automóveis, símbolos da afirmação econômica de que os possui. A despeito de todos esses avanços, que incluem mais médicos, mais casas, mais escolas, mais inclusão, mais isso e aquilo, metrôs, BRTs, enfim, mentiras prometidas e verdades desmentidas, o estado de guerra civil urbana em que vivemos desfaz a ilusão do céu prometido aos eleitores, e nos obriga ao convívio no inferno que criamos para nós mesmos: os “quebra-quebras” urbanos, ou, para os alinhados politicamente corretos, os movimentos de protesto desvirtuados em anarquia pela minoria esmagadora. O maior truque do diabo é nos fazer acreditar que ele não existe. Mas, pouco a pouco, e a cada quebra-quebra, eles vão aparecendo, mesmo em face da descrença oficial.
Então, se isso já for suficiente para acreditarmos na sua existência e na do inferno –, que para isso basta sair às ruas – restaria identificar esses demônios. Estariam eles personificados só nos produtos e subprodutos anônimos de nossas redes sociais que promovem a desordem pela desordem? Ou quem sabe carregam os nomes e os CPFs dos nossos representantes dos três poderes, quando perdem todo e qualquer valor moral diante de seus representados. Não seriam eles a imagem do capeta quando esquecem que a só preferência nas pesquisas, a só vitória eleitoral e o só uso das capas e togas com que são ungidos não legitimam seus atos se deixarem de lado a sua nobre missão civilizatória idealizada pelos cidadãos de um país?
Não se cogita de moralismo, mas de constatar que o uso enviesado das prerrogativas institucionais, por ação ou omissão, sejam quais forem esses desvios e de quais círculos de poder eles provenham, acabam por contaminar, pelo mau exemplo, a sociedade inteira. A diabolização preenche o vácuo dos valores políticos e morais aberto pela irresponsabilidade oficial, como quando prefere imobilizar milhões de pessoas para evitar desgaste político de um lado e perda econômica de outro.
Enquanto esse vácuo não for preenchido pela legitimação que resulta do exercício do poder pelo primado da moral e da ética, seu espaço será ocupado pelos diabos detonadores de rojões a esmo. Então, se perguntado “por que o cinegrafista?”, o diabo responderia: porque é de seu ofício reproduzir a imagem da verdade. E, se ela fosse mostrada, o truque seria desmascarado. Nada mais simbólico do que a morte de um cinegrafista para significar que as imagens resultantes da nossa “ética pública” não podem ser mostradas. Nós atiçamos o inferno com nosso voto e consequente inércia, e deixamos que o diabo se encarregue do truque da mira para que a verdade permaneça oculta.
*JORNALISTA, SUBPROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA APOSENTADO
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