Revelamos aqui as causas e efeitos da insegurança pública e jurídica no Brasil, propondo uma ampla mobilização na defesa da liberdade, democracia, federalismo, moralidade, probidade, civismo, cidadania e supremacia do interesse público, exigindo uma Constituição enxuta; Leis rigorosas; Segurança jurídica e judiciária; Justiça coativa; Reforma política, Zelo do erário; Execução penal digna; Poderes harmônicos e comprometidos; e Sistema de Justiça Criminal eficiente na preservação da Ordem Pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

UM RETROCESSO SIMBÓLICO


ZERO HORA 22 de fevereiro de 2014 | N° 17712


ANDRÉ DE CARVALHO RAMOS


Nos debates internacionais, é possível definir, grosso modo, o terrorismo como sendo todo ato ilícito realizado por meio de violência contra bens ou pessoas da população civil, cometido por indivíduo ou grupo de indivíduos, cujo objetivo é gerar terror e intimidar determinada população, para coagir um Estado, organização internacional ou outro grupo social a fazer ou deixar de fazer algo. Mais do que causar danos materiais e pessoais, o terrorismo visa a gerar medo e obter a conduta desejada daqueles intimidados.

O século 20 testemunhou múltiplas ações terroristas: elas foram instrumento para obtenção violenta de mudanças políticas e sociais por parte de grupos antidemocráticos minoritários, serviram para a defesa de ditaduras (terrorismo de Estado), bem como foram usadas como reação a regimes autocráticos e à ocupação colonial. Por isso mesmo, em vários momentos, não ficou clara a distinção entre o terrorismo e a luta legítima. A figura lendária de Nelson Mandela também foi rotulada como “terrorista”, pela sua luta contra o apartheid na África do Sul. Vários Estados até hoje não se cansam de classificar opositores políticos de “terroristas”, para debilitá-los e isolá-los interna ou internacionalmente. Essa “demonização do inimigo” é o risco óbvio da amplitude dos termos “terrorismo” e “terrorista”, especialmente quando usado em tipificações penais. Afinal, o Direito Penal é um instrumento de controle em qualquer sociedade contemporânea, servindo não somente para reprimir, mas também para intimidar e prevenir condutas. Uma norma penal que não seja suficientemente específica pode servir para abafar e reprimir condutas legítimas, criando o receio dos envolvidos de serem acusados e condenados pela prática de terrorismo pelos órgãos do sistema de Justiça.

No Brasil, há mais de 25 anos a Constituição prevê o repúdio ao terrorismo, em seu artigo 4º, inciso VIII, bem como determina que a lei deve considerar o terrorismo como sendo um crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia (artigo 5º, inciso XLIII). Atualmente, há previsão de que a pena por crime de terrorismo deve ser cumprida inicialmente em regime fechado, e a progressão de regime só ocorrerá após o cumprimento de dois quintos da pena, se o apenado for primário, e de três quintos, se reincidente. Por sua vez, redigido no tempo da ditadura e ainda vigente, o artigo 20 da Lei de Segurança Nacional (Lei n. 7.170/83) prevê, sem definir, que praticar “atos de terrorismo” é crime apenado com pena de reclusão de três a 10 anos, com possibilidade de aumento de pena se houver lesão ou morte. Apesar dos múltiplos usos do termo na legislação, não avançamos quanto à definição do que vem a ser “terrorismo” pelo Direito Penal.

Por isso, no bojo dos estudos referentes à imprescindível reforma do nosso Código Penal, a comissão de especialistas responsável introduziu um tipo penal denominado “terrorismo”, que foi mantido no substitutivo do Senador Pedro Taques (PDT-MT), relator da matéria no Senado Federal (PL 236/2012). Pelo projeto de novo Código Penal, o terrorismo consiste em atos odiosos (homicídios, sequestros, etc.) que têm como finalidade causar terror na população para: 1) forçar condutas não previstas em lei a autoridades públicas, nacionais ou estrangeiras, ou pessoas que ajam em nome delas; 2) obter recursos para a manutenção de organizações políticas ou grupos armados, civis ou militares, que atuem contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; ou 3) forem motivadas por preconceito de raça, cor, etnia, religião, nacionalidade, origem, gênero, sexo, identidade ou orientação sexual, condição de pessoa idosa ou com deficiência, ou por razões políticas, ideológicas, filosóficas ou religiosas. Assim, além do ato em si, o terrorismo exige finalidades antidemocráticas ou preconceituosas. O projeto ainda contém uma cláusula de exclusão, que visa a evitar a intimidação dos protestos e movimentos sociais, no seguinte sentido: “Não constitui crime de terrorismo a conduta individual ou coletiva de pessoas movidas por propósitos sociais ou reivindicatórios, desde que os objetivos e meios sejam compatíveis e adequados à sua finalidade”.

Há, portanto, uma preocupação do projeto do novo código de se evitar que o Direito Penal seja utilizado como repressão aos movimentos sociais, rotulando-os como “inimigos” e os expondo aos abusos de interpretação das autoridades públicas. Mesmo assim, o projeto foi objeto de críticas, pois os atos tidos como terroristas já se encontram previstos na legislação comum (por exemplo, homicídio) e, ainda, a cláusula contra a criminalização dos movimentos sociais poderia ser alvo de interpretações restritivas, para restringir indevidamente as manifestações contra o Poder Público. De qualquer modo, sujeito aos aperfeiçoamentos que a discussão no Congresso Nacional naturalmente gera, o projeto do novo Código Penal representa uma análise conjunta do novo Direito Penal que uma sociedade democrática como a brasileira deseja. É uma obra necessária, atualizando valores que devem ser protegidos penalmente e superando o Código Penal atual, que vem do tempo da ditadura.

Contudo, o que se discute neste início de ano de 2014 é bem distante de uma análise sistemática do modelo punitivo desejado: o projeto de lei 499/2013 – já sujeito a uma série de emendas – foi colocado na pauta como reação legislativa ao assassinato do repórter cinegrafista Santiago Andrade. A redação original do projeto 499 traz um tipo penal aberto, que criminaliza genericamente o ato de “Provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física, à saúde ou à liberdade de pessoa”.

A vagueza e a indeterminação são evidentes: o que seria “pânico generalizado”, ou “infundir terror”? O peso negativo imenso do rótulo de “terrorista” no século 21, após a tragédia do 11 de setembro, exige maior especificidade na tipificação penal. Sem contar que as condutas que atentem contra a vida e o patrimônio já são crimes previstos pelo nosso Código Penal. Agregar um novo tipo penal aberto, em claro contexto de resposta conjuntural a um crime, sem a visão sistemática do novo Direito Penal democrático que queremos, nos remete às chamadas legislações de pânico, sempre objeto de apropriação demagógica. Esse tipo penal de “terrorismo” do projeto original 499/13 não vai melhorar a segurança pública das manifestações e dos eventos que sediaremos em 2014, o preparo dos corpos policiais ou aumentar a inteligência policial na investigação de delitos. Mas seu efeito simbólico será devastador ao sugerir o retorno ao tempo em que alguns tratavam as manifestações sociais como sendo “um caso de polícia”.

POR ANDRÉ DE CARVALHO RAMOS PROFESSOR DE DIREITO INTERNACIONAL E DIREITOS HUMANOS DA FACULDADE DE DIREITO DA USP (LARGO SÃO FRANCISCO)

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